quarta-feira, 23 de julho de 2014

Alice Moderno e a ALRA


Alice Moderno e a ALRA

Muito pouco se tem escrito sobre Alice Moderno e quando se escreve, algumas vezes esconde-se partes da sua vida e obra, outras vezes repetem-se falsas informações sem ter o cuidado de ir às fontes primárias ou mesmo ir além das simples pesquisas na internet.

Não sei que fonte ou fontes consultou a ALRA - Assembleia Legislativa Regional dos Açores para elaborar a nota biográfica de Alice Moderno (http://base.alra.pt:82/Doc_Noticias/NI6520.pdf), mas tenho, num caso, muitas dúvidas acerca do rigor de algumas das afirmações e, no outro, tenho a certeza de que se trata de um engano ou erro, espero que não voluntário.

Vejamos a primeira afirmação: “Republicana, depois de 1910, com a implantação da República Portuguesa, passou a participar ativamente na vida social e política de Ponta Delgada, designadamente na campanha a favor da aprovação da lei do divórcio.”

Escrever que Alice Moderno passou a tomar parte na vida social apenas depois de 1910 é ignorar que desde que começou a sua “vida literária”, em 1883, até à implantação da República, a “mulher piorneira” publicou “Aspirações”, “O Dr. Sandoval”, “Os mártires do Amor”, “No Adro”, “Açores: Pessoas e Coisas”, “Os Mártires” e “Mater Dolorosa”. É, também, passar uma esponja sobre a sua atividade jornalística, como fundadora do jornal “Recreio das Salas”, colaboradora ativa do “Diário de Anúncios” e fundadora do jornal “A Folha”.

Tanto quanto é do meu conhecimento, o divórcio foi legalizado em Portugal através de um decreto publicado a 3 de Novembro de 1910, portanto menos de um mês após a implantação da República, pelo que tenho muitas dúvidas acerca da ocorrência de uma campanha realizada entre 5 de Outubro de 1910 e 3 de Novembro do mesmo ano.

Aproveito, a oportunidade, para divulgar o que Alice Moderno escreveu sobre o assunto. No jornal “A Folha” de 16 de Outubro de 1910, pode ler-se:

“Informam telegraficamente que em dezembro próximo será decretada a lei do divórcio. Assim devia ser, e semelhante medida está perfeitamente de acordo com a perfeita orientação do governo provisório da República Portuguesa. O divórcio é permitido em todos os países em evidência pela sua supremacia intelectual, e, muito longe de contribuir para a dissolução da família, é, pelo contrário, um incentivo para a perfeita constituição da mesma”.

A 13 de Novembro, do mesmo ano, na rubrica “URBI ET ORBI”, no mesmo jornal, o assunto do divórcio é referido do seguinte modo:

“ Como noticiáramos no nosso último número, já foi decretada a lei do divórcio…Um telegrama para um nosso colega diário diz ter essa lei dado origem a muitos protestos. Suporão os protestantes que o divórcio é obrigatório, como o serviço militar?!”

A segunda afirmação “Legou os seus bens a diversas causas de beneficência e adquiriu o imóvel das Capelas destinado à Casa do Gaiato”, não faz qualquer sentido como se poderá verificar através da apresentação de alguns dados.

No dia 31 de Janeiro de 1946, Alice Moderno faz um testamento deixando como herdeira proprietária dos seus bens a Junta Geral Autónoma do Distrito de Ponta Delgada, ficando esta obrigada a criar um hospital para animais no prazo de dois anos após a sua morte.

Alice Moderno morre em Fevereiro de 1946 e menos de dois anos depois começou a funcionar um espaço na Rua Coronel Chaves que mais parecia um canil do que um hospital, passando depois para novas instalações que, segundo a prof. Conceição Vilhena, “afirma-se, não tem aquelas dimensões desejadas pela sua fundadora”.

Depois da morte do seu irmão, Vítor Rodrigues Moderno, em 1953, que era o usufrutuário dos bens de Alice Moderno, a Junta Geral, em reunião realizada em 1954, decidiu vender todos os bens e comprar uma casa e propriedade para a instalação da Casa do Gaiato.

Como se poderá concluir Alice Moderno não comprou a Casa do Gaiato, nem deixou em seu testamento nenhuma indicação nesse sentido, tendo a aquisição sido da única responsabilidade da Junta Geral.

Se estiver errado darei a mão à palmatória.


Teófilo Braga
publicado originalmente no Correio dos Açores a 23 de junho de 2014


terça-feira, 15 de julho de 2014

Visita guiada no roteiro de Alice Moderno


No dia 11 de agosto, aniversário do nascimento de Alice Moderno, o Coletivo promove uma visita guiada pelos lugares onde Alice Moderno viveu, estudou, trabalho e se relacionou. O passeio/roteiro é dirigido a todas as idades e em duas línguas (português e inglês).

11 de Agosto de 2014
14h30 | participação livre
duração: 2h
ponto de encontro: largo em frente à Câmara Municipal de Ponta Delgada


No aniversário do seu nascimento, queremos dar a conhecer, através de locais onde que viveu, trabalhou, construiu e frequentou, mais um pouco da vida e da obra da escritora, poetisa, jornalista, professora, benemérita, republicana, feminista e mulher de negócios, dedicada a causas sociais, Alice Moderno.

Mulher com uma vida multifacetada, nesta primeira versão do roteiro, sem descurar outras, realça-se a causa da proteção animal, uma das que convictamente abraçou.


segunda-feira, 14 de julho de 2014

Roteiro de Alice Moderno na Cidade de Ponta Delgada (2)


Roteiro de Alice Moderno na Cidade de Ponta Delgada (2)

Neste número do jornal Correio dos Açores dou seguimento ao texto publicado neste jornal no passado dia 2 de Julho, continuando a apresentar alguns locais relacionados com Alice Moderno.

5 – Rua do Valverde

Numa casa que pertenceu ao Sr. João Luís da Câmara viveu o advogado, Dr. Henrique de Paula Medeiros, que segundo Alice Moderno terá sido quem pela primeira vez falou na necessidade da criação de uma sociedade protetora de animais.

Alice Moderno, que frequentava a casa, escreveu que o Dr. Henrique Medeiros, era um “extremoso defensor” dos cães, possuindo “alguns felizardos” e que o quintal da casa “ era um verdadeiro asilo para os felinos, que lá cresciam e se multiplicavam, conforme o preceito evangélico”.

6 – Rua Pedro Homem

Fundada em 1911, a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais manteve-se quase inativa até 1914, ano em que Alice Moderno assumiu a presidência da mesma.

Foi sob a sua presidência que a SMPA foi dotada de uma sede que se situou na rua Pedro Homem, nº 15, rés-do-chão.

Para além da sede foi adquirido mobiliário e foram tomadas medidas conducentes a acabar com os maus tratos de que eram alvo os animais usados no transporte de cargas diversas, nomeadamente os que transportavam beterraba para a fábrica do açúcar, e para a educação dos mais novos, através do envio de uma comunicação aos professores “pedindo-lhes para que, mensalmente, façam uma preleção aos seus alunos, incutindo no espírito dos mesmos a bondade para com os animais, que não é mais do que um coeficiente da bondade universal”.

7 – Rua Coronel Chaves

No dia 31 de Janeiro de 1946, vinte dias antes de falecer Alice Moderno, em testamento, deixou alguns bens, à Junta Geral Autónoma do Distrito de Ponta Delgada, com a condição desta, no prazo de dois anos, criar um hospital para animais.

Um arremedo de hospital, começou a funcionar, em Janeiro de 1948, num pequeno pavilhão pouco espaçoso no canto norte da rua Coronel Chaves, onde até há alguns anos funcionou o CATE.

As suas minúsculas dimensões e por se assemelhar mais a um canil do que a um hospital fizeram com que o intendente de pecuária, Dr. Vítor Machado de Faria e Maia, não o tenha considerado digno de ser oficialmente inaugurado.

8 – Serviços de Desenvolvimento Agrário

Alguns anos mais tarde, a Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada construiu um edifício na Estação Agrária, em São Gonçalo, com um pouco mais de espaço. O mesmo foi dotado do material e da aparelhagem necessária, tendo a sua manutenção ficado a cargo dos rendimentos obtidos através do legado da benemérita Alice Moderno.

Nos primeiros anos, sob a administração da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, presidida pela Dona Fedora Serpa Miranda, com a colaboração da Junta Geral, foi assegurada a enfermagem permanente aos pequenos animais e a consulta diária a animais de todas as espécies, através do veterinário municipal de Ponta Delgada.

9 – Cemitério de São Joaquim

Alice Moderno faleceu a 20 de Fevereiro de 1946 e está sepultada no Cemitério de S. Joaquim de Ponta Delgada, num jazigo por ela mandado construir ainda em vida.

No mesmo jazigo encontra-se sepultada Maria Evelina de Sousa, outra mulher que teve um papel de destaque na criação da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais.

Maria Evelina de Sousa foi a professora do primeiro ciclo, diretora da “Revista Pedagógica”, redatora dos estatutos da SMPA e membro da direção daquela associação.


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, nº 30381, 9 de Julho de 2014, p. 11)


domingo, 13 de julho de 2014

Roteiro de Alice Moderno na Cidade de Ponta Delgada (1)


Roteiro de Alice Moderno na Cidade de Ponta Delgada (1)

No passado dia 9 de Junho, Alice Moderno foi distinguida, pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, a título póstumo, com a insígnia Autonómica de Mérito Cívico, numa cerimónia realizada na Vila de Nordeste.

No dia anterior, 8 de Junho, dois membros do Coletivo Alice Moderno, sediado na Ribeira Grande, acompanharam o primo de Alice Moderno, que esteve presente na cerimónia mencionada, numa pequena visita por diversos locais de Ponta Delgada de algum modo ligados à vida e obra da escritora, professora, benemérita e mulher de negócios e de causas, Alice Moderno.

Neste número do jornal Correio dos Açores dou a conhecer alguns dos locais de Ponta Delgada associados a Alice Moderno.

1- Rua Manuel da Ponte

No edifício cujas portas possuem os números 34 e 36 situado na rua Manuel da Ponte, antiga rua da Fonte Velha, viveu e faleceu, em 1946, Alice Moderno.

Neste mesmo edifício funcionou a redação e a administração do jornal “A Folha”, bem como a tipografia “Alice Moderno”.

Foi nesta tipografia que foram impressas algumas obras de Alice Moderno, como a peça de teatro, em prosa, “Na véspera da Incursão”, dedicada ao Doutor António Joaquim de Sousa Júnior, o primeiro ministro da Instrução Pública após a implantação da República, em 1910, e a peça de teatro, em verso, “A Voz do Dever”, dedicada ao Dr. Afonso Costa, um dos políticos mais influentes da Primeira República.

2- Rua do Castilho

No número 1 da rua do Castilho, funcionou, antes de se mudar para a rua da Fonte Velha, a redação e a administração do jornal “A Folha” e a tipografia “Alice Moderno”. Foi aqui que foram impressos o monólogo “Mater Dolorosa”, dedicado “à grande atriz Lucinda do Carmo”, e “A Apotheose”, peça de teatro escrita, por Alice Moderno, para homenagear João de Melo Abreu.

Nesta tipografia da Rua do Castilho foram compostos e impressos os primeiros números do jornal anarquista micaelense “Vida Nova”, de periodicidade quinzenal, que se apresentava como “Órgão do Operariado Micaelense” e que viu a luz do dia entre 1 de Maio de 1908 e 30 de Setembro de 1912. O “Vida Nova” teve como proprietário e diretor Francisco Soares Silva que foi um dos fundadores da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais.

3 – Largo de Camões

Em dependências do Convento da Graça, concluído em 1680, o Governador Civil de Ponta Delgada, Dr. Félix Borges de Medeiros, por edital de 21 de fevereiro de 1852, mandou instalar o Liceu de Ponta Delgada (o Liceu da Graça).

Frequentado apenas por rapazes, só em 1887, surgiu a primeira estudante, Alice Moderno, que “escândalo dos escândalos” usava cabelo cortado.

4- Rua da Mãe de Deus

Alice Moderno viveu numa época em que havia fome e miséria nos Açores (hoje apenas se modernizaram) e achava que a solução deveria partir dos órgãos do governo, mas nunca excluiu a prática da caridade.

Ao longo da sua vida, através do seu jornal procurava sensibilizar a comunidade e colaborava quer monetariamente quer compondo poesias expressamente para serem recitadas em festas de beneficência.

Na esquina da rua da Mãe de Deus com a Rua Padre César Augusto Ferreira Cabido existiu o “Asilo da Infância Desvalida”, fundado em 15 de dezembro de 1855, que já foi “Internato Feminino da Mãe de Deus” e hoje designa-se “Mãe de Deus, Associação de Solidariedade Social”.

Alice Moderno, no seu testamento, deixou ao “Asilo da Infância Desvalida” uma cruz de brilhantes com o objetivo de que com o valor da sua venda fosse instituído um “prémio anual, a atribuir à aluna que mais se distinguisse pelas suas qualidades de inteligência e trabalho”.

(Continua)


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, nº 30375, 2 de Julho de 2014, p.14)


quinta-feira, 10 de julho de 2014

Entrevista a João Carlos Moderno



João Carlos Júnior Moderno tem 29 anos, nasceu no Brasil e vive atualmente em Inglaterra. Por interesse próprio, tem-se dedicado à investigação do percurso da família Moderno (a sua), com particular interesse sobre a vida e obra de Alice Moderno, francesa, que se mudou para os Açores ainda em criança, tendo vivido mais de metade da sua vida em São Miguel. No dia 9 de junho, o Governo Regional condecorou Alice Moderno. Júnior esteve presente na cerimónia e recebeu a devida insígnia.

O Coletivo Alice Moderno acompanhou a sua estadia na ilha e conversou com ele.



Coletivo Alice Moderno (CAM): No passado mês de junho viajaste de Londres até à Vila do Nordeste, em São Miguel, para estares presente na cerimónia que condecorou Alice Moderno, tua antepassada, e receber a respetiva medalha. Como vês esse reconhecimento, ao fim de décadas?

Júnior Moderno (JM): Achei importante para a historia local essa condecoração. Ela foi uma mulher que fez muito pela ilha e também para a Republica. Depois desses anos todos a vida e obra da minha prima foi revivida mas com sérios escândalos como o mau uso do hospital [fundado a seu pedido e custeado por ela] e o abandono do seu jazigo, sendo que nessa época ela tinha muito dinheiro e deixou bens para isso tudo.

CAM: Tendo sido uma cidadã com intervenção social em variadíssimas áreas, e sempre com uma perceptiva de justiça social, como entendes o facto de ser hoje uma pessoa quase totalmente desconhecida do grande público micaelense?

JM: Primeiro pelo fato dela ter sido uma feminista e ter vivido no mínimo 100 anos à frente do seu tempo, foi a primeira mulher a estudar no ensino médio, lutou pela implementação da Republica, pelo direito ao divórcio, pelos direito dos animais, viveu com sua companheira durante anos e ao serem enterradas lado a lado, falecendo apenas com 8 dias de diferença, me parece que foi muito conveniente esquecer dela(s). Numa época completamente conservadora e católica, uma heroína lésbica seria uma vergonha.

CAM: Há pouco falavas sobre o mau uso do Hospital Alice Moderno. Nos últimos tempos tem havido uma pressão, tanto da parte da sociedade civil como de algumas organizações político-partidárias, para que o hospital venha a servir os propósitos delineados pela Alice Moderno, quando deixou uma parte da sua herança para a sua construção e manutenção. Ainda que essa pressão não tenha surtido efeito do ponto vista prático, como achas que o serviço deveria funcionar hoje?

JM: Primeiro que quando estive em Ponta Delgada tive a informação que nos Açores não existe nenhuma clínica veterinária gratuita, sendo que foi deixado dinheiro e terras para isso. O hospital que existe está arrendado ao privado, que gera o dinheiro do aluguer e ainda leva o seu nome sendo completamente usado contra os princípios dela. Novamente, mau uso dos seus bens e da sua memória.

Eu acho que devia ser gratuito ou no mínimo com preços bem simbólicos com valores. Na minha cidade, no Brasil, existe esse serviço completamente gratuito e por isso existem filas de espera para, por exemplo, esterilização dos animais. Há o espaço que Alice deixou mas não há interesse dos governantes para isso.

CAM: Falaste também do jazigo, podes explicar melhor qual é a situação atual?

JM: Estive no jazigo da minha prima assim que cheguei e para minha surpresa aquilo estava completamente abandonado. O vidro esta quebrado, o interno, e o externo imundo e com o nome da Alice Moderno quase desaparecendo no topo do jazigo. Olhando pelo espaço onde o vidro estava quebrado pude ver o segundo caixão com uma fita caída com o nome da Maria Evelina, e no exterior não havia nenhuma placa com o seu nome, nem nenhuma indicação de quem ela foi.

Acho que uma limpeza e manutenção seria o mínimo que o Estado poderia dar para duas mulheres que deram tanto para a sociedade. Deram ensinamentos e deixaram os seus bens, e serem tratadas com desprezo e lixo é ridículo e uma falta de respeito.

CAM: Acreditas que o facto de terem sido feministas e um casal, ainda que na clandestinidade no seu tempo, isso pode continuar a ser um entrave no reconhecimento dos seus trabalhos e projetos?

JM: Nao sei hoje como é a sociedade micaelense. Mas se for ainda bem religiosa como naquele tempo acredito que isso possa levar ainda mais tempo para se resolver mesmo sabendo que recuperar os ideiais e projetos de Alice só benefícios para toda a sociedade. Mas acredito que estamos no século XXI e pessoas não são como antes. Portugal já aceita o casamento homossexual e muitas coisas já foram feitas. Espero.

CAM: Talvez ainda sejam necessários mais 100 anos para muitos dos desejos e ideais revolucionários da Alice Moderno e Maria Evelina sejam postos em prática, no que diz respeito à proteção animal que expetativas tens para vê-los acontecer em breve?

JM: Na verdade em breve, eu gostava de ver feita uma faxina e colocada uma plaquinha no jazigo. Se o Estado não fez isso até agora é difícil falar no “breve”. Mas um bom começo seria a limpeza, manutenção e identificação onde elas estão no momento. Falar e falar sobre elas, celebrar, ensinar crianças dessa terra que existiram heroínas que lutou pelos direitos de suas mães, o direito ao trabalho, à educação, ao voto, à autonomia, à participação pública.

Em relação ao Hospital seria um bom projeto recupera-lo, e espero que seja feito logo, pois a população precisa disso, porque para além da questão económica também está ligado a saúde mental das pessoas. Imagine quantos velhinhos vivem sozinhos com apenas seus animais como companheiros, que necessitam de cuidados. Gostaria de ver também uma placa ao lado dos azulejos do padre lá casa Gaiato, pois aquele terreno foi adquirido com a herança da minha prima, com o suor do seu trabalho. Seria isto querer muito? Acho que não.


terça-feira, 8 de julho de 2014

Cavalhadas aos olhos de turistas


Eu adoro tradições, bem como as ilhas dos Açores. Como uma turista que já cá esteve várias vezes, estava a visitar Ribeira Grande/Ribeira Seca, para ver as Cavalhadas, a 29 de Junho.

Inicialmente estava feliz por ver tantos cavalos embelezados e pessoas contentes à espera do início do cortejo. Mas então reparei que alguns dos cavalos estavam nervosos, o sino à volta do seu pescoço a fazer um barulho constante e, pior, que os cavaleiros não eram competentes a montar os seus cavalos. Talvez consigam montar um cavalo nas montanhas, na natureza, mas isto, nas Cavalhadas, é algo diferente.

Então viam-se cavalos nervosos, a avançar a medo, a virar-se freneticamente ou a encostarem-se contra as paredes das casas, sem se atreverem a avançar. Pude reparar que os cavaleiros estavam ansiosos e receosos. Já não era algo belo de se ver.

Por exemplo, houve um cavalo, montado por um jovem, que se enervou e perdeu o controlo. O jovem não sabia o que fazer para o acalmar, as pessoas começaram a gritar, o que não ajudou, e outro homem tentou agarrar as rédeas para acalmar o cavalo. Mas esse homem esqueceu-se que tinha uma criança nos seus ombros, o que foi perturbador de assistir.

Como é possível tentar domar um cavalo e, ao mesmo tempo, colocar uma criança em perigo?

Não fui a única pessoa a considerar que isto não é uma coisa boa. Não é bom para as pessoas nos cavalos, nem para os cavalos e, certamente, não o será para a tradição.


Myra ter Meulen
Países Baixos
(Tradução: Raquel Gamboa)


sábado, 5 de julho de 2014

Cavalhadas de São Pedro na Ribeira Grande


Cavalhadas de São Pedro, cortejo da agonia

Já passava mais de uma década desde a última vez em que assisti às Cavalhadas, na Ribeira Grande. Na altura era eu estudante de cinema e em conjunto com um colega de curso queria realizar um documentário sobre as tradições portugueses que se baseiam em práticas violentas contra animais. As Cavalhadas era, e é, inegavelmente, uma dessas tradições. Voltei para a Ribeira Grande de câmara em punho para então captar o máximo de imagens que podia. Coisa essa que não aconteceu, pois há 10 anos o sangue frio não abundava e os primeiros 10 minutos a assistir ao cortejo rapidamente transformaram-se em longas e bárbaras horas.

Este ano decidi não só assistir ao cortejo, e perceber se teria havido algum tipo de progresso, como desafiei continentais e outros europeus a assistirem também.

Chegando perto do local de saída do cortejo, rápido se percebeu que tudo continuava na mesma. O cenário que se monta na preparação da saída remete-nos uma cena “digna” de uma aparecimento público dessas famílias reais que vão sobrevivendo em alguns países.

Apesar da brincadeira real arquitetada nas varandas de um grande solar açoriano, na rua tudo está tenso. Os cavaleiros estão tensos, os cavalos estão tensos, as pessoas que assistem estão tensas.

As pessoas movem-se com receio e cautela, os cavalos assustam-se e tentam escapar, os cavaleiros, tentam, como podem, não ficar mal em público e forçam ainda mais os cavalos a estarem em posições desconfortáveis. Aqui o desconforto é o rei, nota-se a sua presença por todo o lado, mas toda gente finge que não vê, toda gente finge que não tem consciência disso, toda gente finge que não faz mal. Afinal, é tradição e a tradição diz que não se questiona a tradição.

Com um ligeiro atraso lá se iniciou o cortejo – mas só depois da chegada de um audi (terá sido ganho nos sorteios do fisco?) que percorreu ruas fechadas ao trânsito (regalias!).

Se houvesse dúvidas sobre como todo o cortejo é mal planeado e perigoso essas dúvidas deixam de existir quando ele se inicia. As pessoas na rua procuram lugares por onde possam fugir, ou sejam, têm a plena consciência de que não é um coisa segura e por isso buscam formas de poderem proteger. Para os cavalos, que muitos deles com certeza nem devem sair dos pastos o ano todo, como se já não bastasse todo aquele ambiente de stress e barafunda, também têm um sino ao pescoço. Imaginem-se a andar uma manhã inteira com um sino ao pescoço a fazer barulho a cada gesto que fazem. Conseguem imaginar? Pois é, terrível não é?

Então é o stress, os sinos, alguns montados por pessoas, visivelmente, sem experiência, outros montados por pessoas obesas, outros ainda tiveram o triplo azar de se cruzarem com pessoas alcoólicas que, com crianças aos ombros, que acharam boa ideia dar palmadas no cavalo pondo assim toda uma rua em perigo, no momento em que esse se assusta ainda mais.

Mas esses são os bêbados, por que há os não-bêbado, e que até se diz que são experts em cavalos que vão gritando, ou melhor, berrando as “linhas orientadoras”, ao lado de uns quantos.

O pânico é visível na cara de toda gente e basta olhar para o chão e ver a quantidade de fezes dos animais para perceber o estado de ansiedade e agonia em que aqueles bichos ficam.

E eu pergunto: qual é a necessidade de tudo isto?

Dizem os populares que todos os anos é assim e que todos os anos há feridos. Dizem também que antes só iam umas poucas dezenas de cavalos e cavaleiros, com alguma experiência e cavalos minimamente habituados aos pisos de alcatrão. Hoje vai tudo, é demasiado. A insegurança e falta de critérios chega ao ponto de permitir a participação de crianças.

Portugal tem retrocedido a passos largos nos últimos anos. É cada vez mais um país envelhecido, entregue a velhos hábitos, à política com mofo, sem capacidade de contribuir para o desenvolvimento social e humano. Mas será que até em coisas tão pequenas, como uma iniciativa que acontece uma vez por ano não há capacidade para progredir? Será que a preocupação com a proteção e bem-estar animal que se dizia, em finais do ano passado, que este novo executivo da CMRG tinha não passa, afinal, de um mito urbano? Será que o argumento da tradição justifica o pânico e mau-estar que animais e pessoas vivem todos os anos a 29 de junho na cidade?

Será que a Ribeira Grande é assim tão pouco ousada ao ponto de ter medo de introduzir alterações em tradições seculares, e conseguir aliar a tradição ao conhecimento cientifico e desenvolvimento humano e conhecemos hoje? Será que no feriado municipal podemos dar uma melhor imagem, mais humana e menos primitiva, da cidade a quem nos visita? Seremos capazes?


Cassilda Pascoal