sábado, 5 de julho de 2014

Cavalhadas de São Pedro na Ribeira Grande


Cavalhadas de São Pedro, cortejo da agonia

Já passava mais de uma década desde a última vez em que assisti às Cavalhadas, na Ribeira Grande. Na altura era eu estudante de cinema e em conjunto com um colega de curso queria realizar um documentário sobre as tradições portugueses que se baseiam em práticas violentas contra animais. As Cavalhadas era, e é, inegavelmente, uma dessas tradições. Voltei para a Ribeira Grande de câmara em punho para então captar o máximo de imagens que podia. Coisa essa que não aconteceu, pois há 10 anos o sangue frio não abundava e os primeiros 10 minutos a assistir ao cortejo rapidamente transformaram-se em longas e bárbaras horas.

Este ano decidi não só assistir ao cortejo, e perceber se teria havido algum tipo de progresso, como desafiei continentais e outros europeus a assistirem também.

Chegando perto do local de saída do cortejo, rápido se percebeu que tudo continuava na mesma. O cenário que se monta na preparação da saída remete-nos uma cena “digna” de uma aparecimento público dessas famílias reais que vão sobrevivendo em alguns países.

Apesar da brincadeira real arquitetada nas varandas de um grande solar açoriano, na rua tudo está tenso. Os cavaleiros estão tensos, os cavalos estão tensos, as pessoas que assistem estão tensas.

As pessoas movem-se com receio e cautela, os cavalos assustam-se e tentam escapar, os cavaleiros, tentam, como podem, não ficar mal em público e forçam ainda mais os cavalos a estarem em posições desconfortáveis. Aqui o desconforto é o rei, nota-se a sua presença por todo o lado, mas toda gente finge que não vê, toda gente finge que não tem consciência disso, toda gente finge que não faz mal. Afinal, é tradição e a tradição diz que não se questiona a tradição.

Com um ligeiro atraso lá se iniciou o cortejo – mas só depois da chegada de um audi (terá sido ganho nos sorteios do fisco?) que percorreu ruas fechadas ao trânsito (regalias!).

Se houvesse dúvidas sobre como todo o cortejo é mal planeado e perigoso essas dúvidas deixam de existir quando ele se inicia. As pessoas na rua procuram lugares por onde possam fugir, ou sejam, têm a plena consciência de que não é um coisa segura e por isso buscam formas de poderem proteger. Para os cavalos, que muitos deles com certeza nem devem sair dos pastos o ano todo, como se já não bastasse todo aquele ambiente de stress e barafunda, também têm um sino ao pescoço. Imaginem-se a andar uma manhã inteira com um sino ao pescoço a fazer barulho a cada gesto que fazem. Conseguem imaginar? Pois é, terrível não é?

Então é o stress, os sinos, alguns montados por pessoas, visivelmente, sem experiência, outros montados por pessoas obesas, outros ainda tiveram o triplo azar de se cruzarem com pessoas alcoólicas que, com crianças aos ombros, que acharam boa ideia dar palmadas no cavalo pondo assim toda uma rua em perigo, no momento em que esse se assusta ainda mais.

Mas esses são os bêbados, por que há os não-bêbado, e que até se diz que são experts em cavalos que vão gritando, ou melhor, berrando as “linhas orientadoras”, ao lado de uns quantos.

O pânico é visível na cara de toda gente e basta olhar para o chão e ver a quantidade de fezes dos animais para perceber o estado de ansiedade e agonia em que aqueles bichos ficam.

E eu pergunto: qual é a necessidade de tudo isto?

Dizem os populares que todos os anos é assim e que todos os anos há feridos. Dizem também que antes só iam umas poucas dezenas de cavalos e cavaleiros, com alguma experiência e cavalos minimamente habituados aos pisos de alcatrão. Hoje vai tudo, é demasiado. A insegurança e falta de critérios chega ao ponto de permitir a participação de crianças.

Portugal tem retrocedido a passos largos nos últimos anos. É cada vez mais um país envelhecido, entregue a velhos hábitos, à política com mofo, sem capacidade de contribuir para o desenvolvimento social e humano. Mas será que até em coisas tão pequenas, como uma iniciativa que acontece uma vez por ano não há capacidade para progredir? Será que a preocupação com a proteção e bem-estar animal que se dizia, em finais do ano passado, que este novo executivo da CMRG tinha não passa, afinal, de um mito urbano? Será que o argumento da tradição justifica o pânico e mau-estar que animais e pessoas vivem todos os anos a 29 de junho na cidade?

Será que a Ribeira Grande é assim tão pouco ousada ao ponto de ter medo de introduzir alterações em tradições seculares, e conseguir aliar a tradição ao conhecimento cientifico e desenvolvimento humano e conhecemos hoje? Será que no feriado municipal podemos dar uma melhor imagem, mais humana e menos primitiva, da cidade a quem nos visita? Seremos capazes?


Cassilda Pascoal


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