segunda-feira, 10 de março de 2014
Os irmãos Bullar e as touradas
AS TOURADAS PARA JOSEPH E HENRY BULLAR
CAPITULO XXXIII
Lisboa – As touradas
Assisti a uma tourada em Lisboa, o espectáculo mais burlesco que se pode imaginar, misto de cómico e de trágico.
Depois das descrições em prosa e verso que toda a gente tem lido e de que todos se lembram, fastidiosa e escusada seria a narrativa da habitual matança de cavalos e touros numa praça em Espanha. Não me recordo, porém, de ter visto nenhum relato minucioso das extravagâncias cómicas que, para divertimento da população de Lisboa e dos aspirantes, tenentes e outros oficiais dos navios da esquadra de Sua Majestade Britânica, actualmente surtos no Tejo, uma vez por semana se representam nesta época do ano nos arredores da cidade.
A pista onde se exibem tais diversões é um edifício hexagonal ou octogonal, a céu aberto, com toscos assentos por toda a parte, ficando por cima dos bancos, do lado ocidental ou da sombra, o camarote da Rainha e os reservados.
Os espectadores dos lugares mais baratos sentam-se do lado oposto, ao Sol, vociferando e protegendo-se da torreira com guarda-sóis ou metendo-se pelos cantos de sombra; os cavaleiros e os toureiros entram por uma abertura do mesmo lado; os touros por uma porta ao norte; por baixo dos camarotes estão os lugares à sombra, correspondentes à plateia.
Tomei assento nestes, últimos, entre joviais aspirantes da nossa marinha, graves despenseiros e velhos marinheiros, que trocavam ditos humorísticos e pragas grosseiras.
Poucas mulheres e menor número de senhoras, não estando a Rainha.
Soldados de baioneta, em vez de polícias, mantinham a ordem, reprimindo vários distúrbios, que ocorreram. Junto de mim, uma donzela confessava que nada lhe agradava mais do que ver o espanhol lutar com o touro, declaração que o seu olhar ansioso e o seu semblante expressivo pareciam confirmar.
Foram os espectadores entrando devagar, até o número de dois mil. Quando começavam a impacientar-se, o estoirar dos foguetes e o rebentar das bombas anunciaram a entrada do vistoso personagem que devia presidir ao movimentado festival. Os lacaios de tricórnios e meias de seda acompanharam-no ao camarote e após breve intervalo, entrou na arena, galopando do lado oposto, o cavaleiro que com o touro se tinha de haver.
A poeirenta praça em que se ia dar o espectáculo fora previamente borrifada com água por meia dúzia de pretos que trajavam um vestuário largo de chita de cores vivas e uma espécie de turbante de penas de peru, à semelhança dos índios da América do Norte.
Estes desajeitados negros formavam alegre grupo que falava e ria desabaladamente, com gestos inconvenientes, vendo-se ali perto outro grupo de moços de forcado, munidos de varas curtas vermelhas, ou forcados, que ostentavam fantásticos fatos de algodão de variegadas cores. Em contraste com tais personagens, de pé no meio da arena, preparado para receber o touro com um pano ou capa encarnada e numerosas bandarilhas, estava um toureiro espanhol, moço ágil, vigoroso e enérgico, de calções negros, justos e jaleco de mangas perdidas.
A tourada lisboeta difere em quase todos os seus pormenores das corridas de Espanha, especialmente nas armas usadas na arena.
O único instrumento utilizado na tourada que faz o objecto desta descrição era um pequeno dardo de madeira, ou bandarilha, de três pés de comprido, como uma medida de jarda, farpeada.
O bandarilheiro segura as farpas pelas extremidades e, logo que o touro corre para ele, de olhos fechados, o homem muito calmamente afasta-se se um pouco para o lado da linha de corrida do animal e enterra-lhe uma e às vezes duas bandarilhas na parte mais polposa do cachaço, onde ficam a rasgar as carnes, perdendo em breve a cor amarelada e tingindo-se de sangue rubro.
Deste modo, poderá um único touro ter espetadas de cada lado do pescoço quinze ou vinte farpas, semelhantes a ensanguentada juba. O animal, aflito, procura livrar-se da tortura, sacudindo, aos berros, as farpas malditas. Quando a dor se toma importável solta o touro bramidos de súplica, quase humanos e dolorosamente expressivos para os não iniciados, buscando por todas as formas, com violentas sacudidelas da cabeça e contorções do pescoço, ver-se livre de semelhante suplício.
Mas os dardos, quando caem, arrancam pedaços da carne que perfuraram. Os cavaleiros usam também bandarilhas, porém três ou quatro vezes mais longas, com o fim de as cravar na cerviz do cornúpeto, dando-lhes uma volta, no momento em que a barba penetra, para que fique solta cerca de três pés do ponto de penetração.
Se a operação é executada com destreza, o público aplaude. Mas se a lança se não finca a valer no pescoço, ou se se parte muito curta de modo que não produz grande dor, ou tão longa que em breve se desprende e cai, então a multidão sensível, sentindo-se lograda, chama pelo diabo para que testemunhe que a coisa foi mal feita e assobia ruidosamente,
Com várias bandarilhas na mão, aguardava o espanhol o touro, que finalmente surdiu de uma porta do lado. O nobre animal, de excelente raça, chifres curtos, farta juba, dorso direito, olhos meigos e boca correcta, caminhava a princípio devagar e com cautela, como se o ofuscasse a luz. De tal modo atraía o touro as simpatias a seu favor, que logo me nasceu o secreto desejo de que o belo e jovem animal dominasse o seu ágil adversário e o atirasse a terra.
Por três segundos permaneceu o boi no meio da praça, imóvel. Depois, resfolegando, soltou um gemido surdo e expressivo, baixou a cabeça, fechou os olhos e atirou-se rapidamente ao toureiro. Este evitou-o com ligeireza e aproveitou o ensejo para lhe cravar duas farpas no pescoço. O animal, torturado, pôs-se a olhar para um e outro lado, rugindo e arfando.
Voltando-se instantaneamente, atirou o quadrúpede repetidas parelhas de coices, num esforço desesperado para se desembaraçar das longas bandarilhas que lhe matraqueavam no cachaço, deu um berro lamentoso e mais uma vez se arremessou ao seu adversário com a rapidez do relâmpago.
Novamente lhe furtou a volta o espanhol, precisamente no momento em que este parecia ir morder o pó, enterrando mais um par de setas de madeira no pescoço a escorrer sangue do atormentado animal.
Tinham-se acabado as bandarilhas. O toureiro abandonara a capa na arena e agora com prazer me convenci de que se iria dar uma corrida leal entre o homem e o generoso bruto, na direcção da barreira que circundava a praça. Corria o espanhol com tanta rapidez como se a vida lhe dependesse (e na verdade dependia) de chegar ou não à estacada. De começo parecia que o toureiro se sairia bem e conseguia pôr-se a salvo; o touro, porém, alcançou-o, no momento em que o homem, com a mão na borda do parapeito, se dispunha a dar o salto para dentro e atirou com ele para cima das bancadas do lado oposto, apinhadas de gente, que logo começou aos vivas, em grande alarido.
Só voltei a respirar fundo quando, entre as vaias e a troça dos espectadores de três tostões, o afortunado espanhol se pôs de novo em pé, depois de tão emocionante cena.
Torcendo orgulhoso o pequeno bigode, ainda que um tanto receoso da ferocidade do animal, o toureiro deu uns passos pela barreira, a repousar um pouco.
O touro seguia-o, tentando por várias vezes sair da arena enraivecido por lhe haver fugido o inimigo; o espanhol, porém, deu-lhe umas palmadas no focinho, familiarmente; outros capinhas atraíram-no com mantas e capas, que deixavam penduradas nos chifres, ao saltarem a barreira.
Finalmente, matraqueando as farpas que em número de quinze ou vinte lhe pendiam do gordo cachaço, o boi, a berrar alto e a galopar, deu uma volta à praça, visivelmente enfurecido.
Mais passes e mais fugas precipitadas ocorreram até que um português com pouca sorte, tão pesado, desajeitado e precipitado quanto o espanhol era ágil, gracioso e calmo, deixando-se ficar pasmado na arena, foi derrubado com um pesado baque, que ainda me soa aos ouvidos, e conduzido para fora, como morto.
Cavalos e cavaleiros, enredados, rolavam no pó, tropeçavam, atropelavam-se, sem consequências graves.
Touro após touro, com mais ou menos decisão e coragem, entrava, bramia e retirava-se, levando na cerviz boa conta de farpas. A populaça grita. Um cornúpeto, furioso, transpõe de um salto a barreira, atrás do bandarilheiro e lança a confusão e o gáudio nas bancadas, tal como o boi da anedota na loja da loiça.
A multidão bate palmas, dá vivas, ruge e grita, conforme está ou não satisfeita. Por fim, começa o entusiasmo a esmorecer e sinto-me invadir fortemente pelo tédio, desejando que aquilo acabe ou seja substituído por coisa diferente.
Após breve intervalo, começaram a ouvir-se, das bancadas do Sol, grito de «preto, preto!». Ao abrir-se novamente a porta, em vez do cavaleiro vestido de seda e do seu garboso cavalo cinzento, surdiram seis lustrosos negros a rolar para o centro da praça um barril vazio. Posto este em pé, meteu-se-lhe dentro um preto, munido de meia dúzia de farpas; outro negro, armado com um par de bandarilhas, ficou ao lado da barrica.
Aberta a porta, saiu do curro novo touro, assarapantado.
A princípio, limitou-se o animal a fitar o negro com uma expressão que parecia de desprezo e depois deu uma volta à praça, olhando os espectadores. Estes, irritados pela suposta mansidão do touro, invectivavam-no com todos a termos do vocabulário português apropriados a tais casos, não esquecendo clamar por todos os diabos, como é de uso, e de instigar em altos gritos o preto a pôr em perigo a vida para divertimento do público.
Não caíram em vão os apupos e as pragas no ânimo do espantado cornúpeto, que, dentro de segundos, fitando com gravidade a barrica e o seu grotesco ocupante resfolegou, e galopando, arremeteu contra eles.
O outro negro pôs-se em fuga, mas, antes que o atirassem ao ar e o trespassassem os galhos do touro, lançou-se ao comprido no chão, com o chato nariz metido no pó, as mãos espalmadas para trás, braços e pernas imóveis e rígidos, como morto, aparentando tanta serenidade, como se estivesse recebendo as carícias de um fiel cão da Terra-Nova.
O animal retirou-se em breve e o negro, agarrando-se-lhe às pernas, deixou- se assim arrastar, até que, furtivamente, se encaminhou para a barreira, seguido quase confiadamente pelo boi, que, às cabriolas, como uma cabra, corria atrás dele.
Coube agora a vez de entrar em cena o preto do barril, em luta com o seu cornígero adversário.
Pondo a cabeça de fora da vasilha, o negro arreganhava os dentes e agitava as penas da cabeça; o quadrúpede, depois de fitar por momentos as estranhas palhaçadas do africano, avançou impetuosamente, de cabeça baixa, para o barril, fazendo-o rolar, bem como o seu ocupante, pela praça. Toda esta estremeceu ao frémito da gargalhada geral.
Portugueses gordos deixavam-se cair para trás, nas bancadas, a tremer como geleia de mão de vaca; as senhoras tapavam com os véus as bocas abertas e os rostos cor de azeitona e tanto aqueles como estas aplaudiam freneticamente. O solene despenseiro, até então tristonho, ria a bandeiras despregadas, olhando em redor para os seus oficiais e soltando uma velha praga, expressão do contentamento que lhe ia n’alma.
O touro, não sabendo que destino dar ao barril e ao preto, continuou a fazê-los rolar na praça, com ar de gravidade. De vez em quando, nos intervalos das rotações, espreitava o africano à boca do casco, sacudia as penas e puxava pelo focinho do boi, trazendo sempre as mãos tintas de sangue.
O bicho, verificando o seu erro, fez um movimento nervoso com a cabeça e a cauda e pôs-se aos saltos em frente do barril no intento de desalojar o negro, ou, ao menos, de o espicaçar no seu esconderijo, acabando por dar violenta marrada na vasilha.
Mas por ser demasiado estreita a boca do barril não conseguia o touro introduzir senão um chifre de cada vez, circunstância de que o africano se aproveitou para continuar a fazer partidas ao seu adversário, que acabou por perder de todo a paciência.
O touro, esgotados todos os esforços para expulsar o negro, fitava com desânimo a boca do barril, batendo com as patas e urrando lamentosamente, por completo desorientado, como criança teimosa e mimalha, até que, depois de cheirar o chão e de soprar para o ar razoável porção de pó, começou a despedaçar impacientemente o barril com a rija testa.
As circunstâncias apresentavam-se muito desfavoráveis ao preto, que saiu carrancudo da vasilha, parecendo implorar, de modo significativo, aos espectadores divertidos: «Socorro, pelo amor de Deus». Mas ninguém veio em auxílio dele.
Os seus cinco companheiros, sentados na borda da barreira, riam e mostravam os dentes. O touro voltou a investir com o barril, fazendo-o rolar para trás e para diante, como casco solto e vazio em carroça, e finalmente, entre colérico e jocoso, pôs-se a empurrá-lo aos ziguezagues através da praça.
Continuava o negro a implorar socorro até que os seus lustrosos conterrâneos, envergonhados com as chufas e os apupos de que estavam a ser objecto, se resolveram a auxiliá-lo.
Atraído pelas vestes garridas dos africanos, acometeu-os ferozmente o cornúpeto, que logo pôs o grupo em debandada.
Três caíram de bruços, de pernas e braços estendidos; os outros conseguiram escarranchar-se na barreira, para a qual treparam como ursos num pau, ao contrário do espanhol, que ali se punha em rápido salto. Nenhum se magoou. O touro limitou-se a cheirar e farejar os que estavam com o nariz no chão, pondo-se os outros a salvo enquanto o animal se entretinha a aplicar o olfacto.
Finalmente, por qualquer processo que não é fácil explicar, conseguiram os seis negros agarrar-se aos chifres e à cauda do boi, levando-o para um e outro lado, a seu bel prazer.
Recolhida a rês ao curro, começaram os preparativos de nova diversão.
Ao centro da praça, fixou-se um poste vertical atravessado por quatro hastes horizontais em cujas extremidades giravam outros tantos cavalos de palha, tais como se vêem, a um penny por volta, em todas as feiras inglesas, de S. Bartolomeu a Weyhill. Os tristes cavalinhos de lona e palha, solidamente presos aos encaixes, eram montados por quatro negros, servindo os outros dois pretos para fazer andar a máquina à roda.
Com a força centrífuga, flutuavam ao vento as caudas e as crinas secas dos cavalos; os negros inclinavam-se para o lado de dentro, erguendo-se nos estribos em trote imaginário; o touro, saindo do curro às cabriolas, arremete furiosamente, sem aviso prévio, nem ruído, nem hesitação, contra o carrocel, estripa o cavalo mais próximo, rasga a lona, arranca para fora a palha e prega com o cavaleiro no chão, entre os destroços. Os outros encolhem as pernas, como medida de segurança e riem-se dos esforços do animal.
Com os chifres enredados na lona e na palha, não foi sem dificuldade que ele se desembaraçou para nova arremetida.
Livre, finalmente, de tais empecilhos, derrubou a rês outro negro, fê-lo rebolar em voltas ridículas, até que, tornando-se o caso mais sério, os seis pretos resolveram saltar para o parapeito, deixando o boi entretido à vontade no redemoinho dos trapos e da palha. Descobrindo, finalmente, a diferença entre um cavalo estofado e um vivo, deixou o touro o carrocel e pôs- se a passear em volta da arena.
Começava o Sol a descer no horizonte e como estivesse quase terminada a lide, foi a populaça autorizada a fazer o que lhe apetecesse com este último dos vinte touros que naquela tarde haviam sofrido os tormentos da corrida. A um sinal dado, que não consegui ver, duzentos indivíduos da escumalha de Lisboa saltaram para o circo, pondo-se às correrias, atrás do animal que bramia.
O touro, sozinho no meio da tumultuosa multidão de maltrapilhos cobertos de pó, que quase enchiam a arena, de cauda levantada e cabeça baixa, varria o circo, derrubando quantos se lhe metiam na frente. Um rapazote de dezoito anos, com uma coragem e persistência de buldogue, raras num homem, correu direito à cabeça do robusto animal, agarrou-o pelos chifres e deixou-se sacudir para todos os lados, sendo finalmente arremessado ao ar a vinte pés de altura, como se fosse simples boneco de palha.
No meio de gritos e de aplausos repetiu o moço mais três vezes a façanha, com tanta persistência que outros vieram imitar-lha. A população empurrava a rês para um e outro lado, torcendo-lhe cruelmente a cauda e picando-a com as farpas. A cena terminou com o regresso do touro ao curro, no meio de uma manada de chocas para ali trazidas no intuito de lhe acalmar a fúria.
Assim acabou esta tourada em Lisboa. A praça fora levantada por D. Miguel para gáudio seu e do seu povo, no começo do reinado. Dizem-me que entre os gostos grosseiros, que deram notoriedade a este Príncipe em Lisboa, o de lidar um touro com as suas próprias mãos era, talvez, o menos repreensível.
Parece que nestas diversões não ocorrem acidentes fatais.
Como os chifres das reses são embolados e guarnecidos com uma cápsula de coiro, os cavalos não se vêem estripados nem dilacerados no ventre pela forma terrível que se observa nas praças de Granada e de Madride.
Em suma: as touradas de Lisboa divergem das de Madride como um combate de box a valer, de outro em que os contendores se esmurram com luvas. Ou como um combate de galos, casual, à porta do celeiro, de outro em que os bichos se apresentam de penas aparadas e de esporões de aço, rutilantes e polidos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)